sábado, 13 de novembro de 2010

Tempo que não o tenho


Cinco ou seis horas pra dormir
Vinte minutos pra comer, lavar o rosto e colocar uma roupa
Trinta minutos pra chegar até o colégio, o que da tempo de fumar um cigarro, e ouvir umas 9 musicas
Cinco horas que passam vagarosamente
Vinte minutos até chegar em casa, isso se pegar carona até a avenida
Trinta minutos pra comer, uma hora pra dormir, depois lavar a louça, arrumar o quarto e tomar um banho
Vinte minutos dentro do ônibus, meia hora esperando dar o horário pra começar a trabalhar
Cinco horas chatas que não passam, voltar pra casa, e uma hora mais ou menos pra ficar com quem se ama.
Cinco ou seis horas pra dormir...


Então era só isso? então quer dizer que eu esperei dezoito anos pra ser ''independente'', e no final era só isso? Essa falta de tempo pra tudo, essa falta de tempo até pra fazer amor, pra chorar, pra tudo! essa rotina emocionante, esse tempo que voa e não me deixa viver? era só isso mesmo?
De fato, eu esperava mais.

sábado, 25 de setembro de 2010

O dia que Júpiter encontrou saturno



Foi a primeira pessoa que viu quando entrou. Tão bonito que ela baixou os olhos, sem querer querendo que ele também a tivesse visto. Deram-lhe um copo de plástico com vodka, gelo e uma casquinha de limão. Ela triturou a casquinha entre os dentes, mexendo o gelo com a ponta do indicador, sem beber. Com a movimentação dos outros, levantando o tempo todo para dançar rocks barulhentos ou afundar nos quartos onde rolavam carreiras e baseados, devagarinho conquistou uma cadeira de junco junto a janela. A noite clara lá fora estendida sobre Henrique Schaumann, a avenida poncho & conga, riu sozinha. Ria sozinha quase o tempo todo, uma moça magra querendo controlar a própria loucura, discretamente infeliz. Molhou os lábios na vodka tomando coragem de olhar para ele, um moço queimado de sol e calças brancas com a barra descosturada. Baixou outra vez os olhos, embora morena também, e suspirou soltando os ombros, coluna amoldando-se ao junco da cadeira. Só porque era sábado e não ficaria, desta vez não, parada entre o som, a televisão e o livro, atenta ao telefone silencioso. Sorriu olhando em volta, muito bem, parabéns, aqui estamos.

Não que estivesse triste, só não sentia mais nada.

Levemente, para não chamar atenção de ninguém, girou o busto sobre a cintura, apoiando o cotovelo direito sobre o peitoril da janela. Debruçou o rosto na palma da mão, os cabelos lisos caíram sobre o rosto. para afastá-los, ela levantou a cabeça, e então viu o céu tão claro que não era o céu normal de Sampa, com uma lua quase cheia e Júpiter e Saturno muito próximos. Vista assim parecia não uma moça vivendo, mas pintada em aquarela, estatizada feito estivesse muito calma, e até estava, só não sentia mais nada, fazia tempo. Quem sabe porque não evidenciava nenhum risco parada assim, meio remota, o moço das calças brancas veio se aproximando sem que ela percebesse.

Parado ao lado dela, vistos de dentro, os dois pintados em aquarela - mas vistos de fora, das janelas dos carros procurando bares na avenida, sombras chinesas recortadas contra a luz vermelha.

E de repente o rock barulhento parou e a voz de John Lennon cantou every dau, every way is getting better and better. Na cabeça dela soaram cinco tiros. Os olhos subitamente endurecidos da moça voltaram-se para dentro, esbarrando nos olhos subitamente endurecidos dos moço. As memórias que cada um guardava, e eram tantas, transpareceram tão nitidamente nos olhos que ela imediatamente entendeu quando ele a tocou no ombro.

-Você gosta de estrelas?
-Gosto. Você também?
-Também. Você está olhando a lua?
-Quase cheia. Em Virgem.
-Amanhã faz conjunção com Júpiter.
-Com Saturno também.
-Isso é bom?
-Eu não sei. Deve ser.
-É sim. Bom encontrar você.
-Também acho.

(Silêncio)

-Você gosta de Júpiter?
-Gosto. Na verdade "desejaria viver em Júpiter onde as almas são puras e a transa é outra".
-Que é isso?
-Um poema de um menino que vai morrer.
-Como é que você sabe?
-Em fevereiro, ele vai se matar em fevereiro.

(Silêncio)

-Você tem um cigarro?
-Estou tentando parar de fumar.
-Eu também. Mas queria uma coisa nas mãos agora.
-Você tem uma coisa nas mãos agora.
-Eu?
-Eu.

(Silêncio)

-Como é que você sabe?
-O quê?
-Que o menino vai se matar.
-Sei de muitas coisas. Algumas nem aconteceram ainda.
-Eu não sei nada.
-Te ensino a saber, não a sentir. Não sinto nada, já faz tempo.
-Eu só sinto, mas não sei o que sinto. Quando sei, não compreendo.
-Ninguém compreende.
-Às vezes sim. Eu te ensino.
-Difícil, morri em dezembro. Com cinco tiros nas costas. Você também.
-Também, depois saí do corpo. Você já saiu do corpo?

(Silêncio)

-Você tomou alguma coisa?
-O quê?
-Cocaína, morfina, codeína, mescalina, heroína, estenamina, psilocibina, metedrina.
-Não tomei nada. Não tomo mais nada.
-Nem eu. Já tomei tudo.
-Tudo?
-Cogumelos têm parte com o diabo.
-O ópio aperfeiçoa o real
-Agora quero ficar limpa. De corpo, de alma. Não quero sair do corpo.

(Silêncio)

-Acho que estou voltando. Usava saias coloridas, flores nos cabelos.
-Minha trança chegava até a cintura. As pulseiras cobriam os braços.
-Alguma coisa se perdeu.
-Onde fomos? Onde ficamos?
-Alguma coisa se encontrou.
-E aqueles guizos?
-E aquelas fitas?
-O sol já foi embora.
-A estrada escureceu.
-Mas navegamos.
-Sim. Onde está o Norte?
-Localiza o Cruzeiro do Sul. Depois caminha na direção oposta.

(Silêncio)

-Você é de Virgem?
-Sou. E você, de Capricórnio?
-Sou. Eu sabia.
-Eu sabia também.
-Combinamos: terra.
-Sim. Combinamos.

(Silêncio)

-Amanhã vou embora para Paris.
-Amanhã vou embora para Natal.
-Eu te mando um cartão de lá.
-Eu te mando um cartão de lá.
-No meu cartão vai ter uma pedra suspensa sobre o mar.
-No meu não vai ter pedra, só mar. E uma palmeira debruçada.

(Silêncio)

-Vou tomar chá de ayahuasca e ver você egípcia. Parada do meu lado, olhando de perfil.
-Vou tomar chá de datura e ver você tuaregue. Perdido no deserto, ofuscado pelo sol.
-Vamos nos ver?
-No teu chá. No meu chá.

(Silêncio)

-Quando a noite chegar cedo e a neve cobrir as ruas, ficarei o dia inteiro na cama pensando em dormir com você.
-Quando estiver muito quente, me dará uma moleza de balançar devagarinho na rede pensando em dormir com você.
-Vou te escrever carta e não te mandar.
-Vou tentar recompor teu rosto sem conseguir.
-Vou ver Júpiter e me lembrar de você.
-Vou ver Saturno e me lembrar de você.
-Daqui a vinte anos voltarão a se encontrar.
-O tempo não existe.
-O tempo existe, sim, e devora.
-Vou procurar teu cheiro no corpo de outra mulher. Sem encontrar, porque terei esquecido. Alfazema?
-Alecrim. Quando eu olhar a noite enorme do Equador, pensarei se tudo isso foi um encontro ou uma despedida.
-E que uma palavra ou um gesto, seu ou meu, seria suficiente para modificar nossos roteiros.

(Silêncio)

-Mas não seria natural.
-Natural é as pessoas se encontrarem e se perderem.
-Natural é encontrar. Natural é perder.
-Linhas paralelas se encontram no infinito.
-O infinito não acaba. O infinito é nunca.
-Ou sempre.

(Silêncio)

-Tudo isso é muito abstrato. Está tocando "Kiss, kiss, kiss". Por que você não me convida para dormirmos juntos.
-Você quer dormir comigo?
-Não.
-Porque não é preciso?
-Porque não é preciso.

(Silêncio)

-Me beija.
-Te beijo.

Foi a última pessoa que viu ao sair. Tão bonita que ele baixou os olhos, sem saber sabendo que ela também o tinha visto. Desceu pelo elevador, a chave do carro na mão. Rodou a chave entre os dedos, depois mordeu leve a ponta metálica, amarga. Os olhos fixos nos andares que passavam, sem prestar atenção nos outros que assoavam narizes ou pingavam colírios. Devagarinho, conquistou o espaço junto à porta. Os ruídos coados de festas e comandos da madrugada nos outros apartamentos, festas pelas frestas, riu sozinho. Ria sozinho quase sempre, um moço queimado de sol, com a barra branca das calças descosturadas, querendo controlar a própria loucura, discretamente infeliz.

Mordeu a unha junto com a chave, lembrando dela, uma moça magra de cabelos lisos junto à janela. Baixou outra vez os olhos, embora magro também. E suspirou soltando os ombros, pés inseguros comprimindo o piso instável do elevador. Só porque era sábado, porque estava indo embora, porque as malas restavam sem fazer e o telefone tocava sem parar. Sorriu olhando em volta.

Não que estivesse triste, só não compreendia o que estava sentindo.

Levemente, para não chamar a atenção de ninguém, apertou os dedos da mão direita na porta aberta do elevador e atravessou o saguão de lado, saindo para a rua. Apoiou-se no poste da esquina, o vento esvoaçando os cabelos, e para evitá-lo ele então levantou a cabeça e viu o céu. Um céu tão claro que não era o céu normal de Sampa, com uma lua quase cheia e Júpiter e Saturno muito próximos. Visto assim parecia não um moço vivendo, mas pintado num óleo de Gregório Gruber, tão nítido estava ressaltado contra o fundo da avenida, e assim estava, mas sem compreender, fazia tempo. Quem sabe porque não evidenciava nenhum risco, a moça debruçou-sena janela lá em cima e gritou alguma coisa que ele não chegou a ouvir. Parado longe dela, a moça visível apenas da cintura para cima parecia um fantoche de luva, manipulado por alguém escondido, o moço no poste agitando a cabeça, uma marionete de fios, manipulada por alguém escondido.

De repente um carro freou atrás dele, o rádio gritando "se Deus quiser, um dia acabo voando". Na cabeça dele soaram cinco tiros. De onde estava, não conseguiria ver os olhos da moça. De onde estava, a moça não conseguiria ver os olhos dele. Mas as memórias de cada um eram tantas que ela imediatamente entendeu e aceitou, desaparecendo da janela no exato instante em que ele atravessou a avenida sem olhar para trás.

Caio F. Abreu

sábado, 18 de setembro de 2010

Luz e sombra


Deve haver alguma espécie de sentido ou o que virá depois? - são coisas assim as que penso pelas tardes, parado aqui nesta janela, em frente aos intermináveis telhados de zinco onde às vezes pousam pombas, e dito desse jeito você logo imagina poéticas pombinhas esvoaçantes, arrulhantes.São cinzentas, as pombas, e o ruído que fazem é sinistro como o de asas de morcego.Conheço bem os morcegos, seus gritinhos agudos, estridentes. Mas não quero me apressar. Penso que se conseguir dar algum tipo de ordem nisto que vou dizendo haverá em conseqüência também algum tipo de sentido. E penso junto, ou logo depois, não sei ao certo, que após essa ordem e esse sentido deve vir alguma coisa.
O que virá depois? - pergunto então para a tarde suja atrás dos vidros, e me sinto reconfortado como se houvesse qualquer coisa feito um futuro à minha espera. Assim como se depois do chá fumasse lentamente um cigarro mentolado, olhando para longe, aquecido pelo chá, tranqüilizado pelo cigarro, enlevado pelo longe e principalmente atento ao que virá depois deste momento. Faz tempo não tomo chá, e controlo tanto os cigarros que, cada vez que acendo um, a sensação é de culpa, não de prazer, você me entende?
Não, você não me entende. Sei que você não me entende porque não estou sendo suficientemente claro, e por não ser suficientemente claro, além de você não me entender, não conseguirei dar ordem a nada disso. Portanto não haverá sentido, portanto não haverá depois.Antes que me faça entender, se é que conseguirei, queria pelo menos que você compreendesse antes, antes de qualquer palavra, apague tudo, faz de conta que começamos agora, neste segundo e nesta próxima frase que direi. Assim: é um terrível esforço para mim. Se permanecer aqui, parado nesta janela, estou certo que acontecerá alguma coisa grave - e quando digo grave quero dizer morte, loucura, que parecem leves assim ditas.Preciso de algo que me tire desta janela e logo após, ainda, do depois.Querer um sentido me leva a querer um depois, os dois vêm juntos, se é que você me entende.
Falava da janela. Poderia começar por ela, então.
É uma janela grande, de vidro. Do teto até o chão, vidro que não abre, compacto. A sala é muito pequena, não há nada nela a não ser um carpete verde-musgo, que me enjoa até o vômito. E agora me ocorre algo novo: creio que foi para não vomitar tanto e tão freqüentemente que passei a olhar pela janela, dando as costas ao carpete.
Então, os telhados.
Não me pergunte como nem por quê, mas a janela não dá para uma rua, como a maioria das janelas costuma dar. A janela dá para aqueles intermináveis telhados de zinco dos quais já falei.Sim, sim, tentei me interessar pelas manchas do zinco, seus pequenos sulcos, as ondulações e todas essas coisas. E realmente me interessei, durante algum tempo. Mas os telhados são intermináveis, você sabe. Não, você não sabe, você não sabe como tentei me interessar pelo desinteressantíssimo. Então começou novamente aquela sensação de enjôo: os telhados estendem-se até o horizonte, como um enorme carpete verde. Antes de começar a vomitar olhando os telhados, felizmente vieram as pombas. Mas como eu já disse: são cinzentas, o ruído que fazem é como o de asas de morcego.Seus bicos batem freqüentemente contra o vidro da janela. Não houvesse vidro, tocariam meu rosto.Para não vomitar, tento olhar para além dos telhados que se fundem ao infinito.Não vejo nada, só o cinza pesado do céu e a fuligem que se deposita aos poucos na beirada da janela.Ao entardecer a fuligem ganha uns tons rosados, e logo depois, quando baixa o escuro, chega o momento de me encolher sobre o carpete para finalmente dormir.
Pela manhã, todo dia, alguém enfiou um pedaço de pão pela fresta da porta, uma lata com água, como se eu fosse um cão, e um maço de cigarros. Não sei quem é.Escuto que constantemente range os dentes, o que talvez seja apenas um jeito de sorrir.Acho que no começo fumava muito, pelo menos o quarto está cheio de cinzas, de pontas de cigarros, já que não existem cinzeiros e é impossível abrir a janela, você está me ouvindo?
Não importa. Em dias muito quentes, costumo ter uma visão. Não sei se uma memória ou uma visão. De qualquer forma, em dias muito quentes, vejo claramente alguma coisa.
São três horas de uma tarde de janeiro. Estou sentado num degrau de cimento. Há três degraus do chão batido com algumas ervas daninhas, talvez urtigas, até a soleira de uma velha porta muito alta, com a pintura marrom semidescascada. Estou sentado no segundo degrau dessa porta.Sei que são três horas da tarde porque as sombras são curtas e a luz do sol muito clara. Sei que é janeiro porque faz muito calor. Não há nenhuma nuvem no céu. A rua está deserta. A rua é coberta por uma camada de terra solta, vermelha. Do outro lado da rua há um muro de pedras. Nada acontece.
Posso ver as copas de alguns cinamomos do outro lado da rua, mas estão imóveis. Não há vento.Sei que além do muro de pedras, mais abaixo, existe um rio.A tarde está tão quente e clara que eu gostaria de ir até o rio. Para isso precisaria levantar deste degrau. Há uma sombra leve sobre a minha cabeça, suficiente para que o sol não a aqueça demasiado.Estou descalço. Não sei que idade tenho, mas não devo ter chegado sequer à adolescência, pois minhas pernas nuas não têm pêlos ainda.Por estar descalço, talvez, não me atrevo a pisar a terra solta e vermelha do meio da rua.
Há cacos de vidro também, cacos verdes de vidro no meio da terra da rua, dos quais o sol arranca reflexos que doem nos meus olhos.Às vezes eu os projeto com a mão em aba na testa. Estou bem, assim. Há tanta luz que preciso contrair um pouco as pálpebras para olhar as coisas de frente.O calor de janeiro aquece meu corpo. Cruzo as mãos sobre os joelhos.Isso me parece bom. Quase tenho certeza que, do outro lado da porta marrom, alguém prepara qualquer coisa como um banho fresco ou um café novo.
E embora a rua esteja deserta, não me sinto só aqui neste degrau, nesta tarde.
Nas noites quentes desses dias quentes, costumo ter outra visão. Já não estou no degrau, mas atrás daquela mesma porta, dentro da casa. Talvez tenham se passado anos, talvez seja apenas a noite daquele mesmo dia. Não há luz. O piso é muito frio. Imagino que seja um quarto, há mosquiteiros suspensos no teto. Não tenho certeza se são mosquiteiros porque não me movimento. Penso também que podem ser teias de aranha, mas prefiro não estender a mão e tocá-los - os tules,as teias - para certificar-me. Prefiro não me certificar de nada. Através de alguma persiana aberta entra no quarto um fino frio de luz azulada. Há vozes lá fora. Imagino que existam pessoas sentadas em frente à casa, na noite quente de verão. De vez em quando, suponho, cai alguma estrela. Estou bem assim, tão bem quanto no degrau.
Não sei quanto tempo dura, nem como tudo começa. Aos poucos meus ouvidos vão separando das vozes lá de fora os guinchos agudos cada vez mais fortes, e logo depois sinto um roçar de asas no meu rosto. Vindo não sei de onde, os morcegos invadem o quarto. Sem querer, penso no teto. Não consigo vê-lo no escuro, mas de alguma forma sei que é feito de travessas finas de madeira, sustentando tijolos caiados de branco.Os morcegos esvoaçam em volta, eu não me movo. Alguns chocam-se contra as paredes, depois caem ao chão chocando estridente, fininho. Então sou eu quem começa a gritar. Sem me mover, olhos fechados, grito grito e grito até que tudo passe, e novamente me encontro encolhido sobre o carpete verde, rosto colado na janela, olhando os telhados intermináveis através do vidro.
A essa hora, quase sempre a fuligem do céu tem aqueles tons rosados. Está amanhecendo.Na porta, o pão, a lata com água, o maço de cigarros. Para apanha-los, mesmo que olhe em frente ou para cima, o verde do carpete m invade os olhos e sempre vomito. Nem sempre sou ágil o suficiente para, com um movimento de cintura, evitar que o vômito caia sobre o pão, a água, os cigarros.
E quando vomito sobre eles, sempre escuto o ranger de dentes atrás da porta. Nesses dias não como, não bebo, não fumo. Apenas caminho até a janela e, desde o momento em que o rosa se desfaz e o cinza baixa outra vez, as pombas bicando meu rosto protegido pelo vidro, repito sempre assim - deve haver alguma espécie de sentido ou o que virá depois?
Não choro mais. Na verdade, nem sequer entendo por que digo mais, se não estou certo se alguma vez chorei. Acho que sim, um dia. Quando havia dor. Agora só resta uma coisa seca. Dentro, fora.
Por vezes fecho os olhos e tenho a impressão que esses telhados intermináveis são a única coisa que existe dentro de mim, você me entende agora? O quê? Sim, tenho vontade de me jogar pela janela, mas nunca foi possível abri-la. Não, não sei o que gostaria que você me dissesse. Dorme, quem sabe, ou está tudo bem, ou mesmo esquece, esquece. Não consigo. Quando vomito sobre o pão, não consigo comer nem vomitar depois. Gosto de vomitar, é um pouco como se conseguisse chorar. Quem sabe você conseguiria pelo menos me ensinar um jeito de vomitar sem precisar comer? Apesar das minhas unhas crescidas, ainda não estão longas nem afiadas o suficiente para que possa crava-las em minha própria garganta. Sim, devo ter lido isso em algum livro. Mesmo dito assim, talvez seja essa a única saída. Gostaria de evitá-la.
Dentro de mim, não consigo deixar de pensar que há alguma espécie de sentido. E um depois. Quando penso nisso, é então como se alguém dançasse sobre esses intermináveis telhados dentro de mim. Sobre os telhados cinzentos alguém vestido inteiro de amarelo. Não sei por que exatamente amarelo, mas brilha. O vento faria esvoaçar seus panos e cabelos. Num grande salto aberto, esse alguém que dança alcançaria a janela abrindo-a com um leve toque das pontas dos dedos. Quase sempre tenho certeza que deve ser você.
Não, não diga nada. Prefiro não saber que não. Nem que sim. Você me despreza por estar aqui assim parado?
E outra vez, não diga nada. Não consigo ver claro seu rosto que os panos e os cabelos cobrem por inteiro, soprados pelo vento. Sei também que, após o salto, você me tomaria pela mão para que eu finalmente levantasse daquele segundo degrau, atravessando a rua de terra solta quente vermelha para, quem sabe, mergulharmos juntos na água fresca do rio. Sei ainda que você me tiraria daquele quarto escuro, entre véus e teias, e mataria um a um os morcegos, para que sentássemos à frente da casa, sem os outros, espiando a queda vertical das estrelas na noite quente de janeiro.
Queria pensar que é esse o sentido, que será esse o depois. Não sei se posso. Há dias, como hoje, em que por mais que minta sequer consigo ver você, seus membros longos que o vento rouba dos panos. Só escuto os dentes rangendo e os ruídos internos do meu próprio corpo. Tudo isso me cega.Leva-me daqui, eu peço. E cruzo as duas mãos sobre o peito, como se sentisse frio ou afastasse demônios. Aperto o rosto contra o vidro. Duas pombas, cada uma delas bica um de meus olhos. Talvez um dia consigam quebrar o vidro.Sem querer, lembro de uma antiga história de fadas: duas pombas furavam os olhos de duas irmãs más, você lembra? Havia fadas naquela história. Não há ninguém dançando sobre os telhados. Nunca houve. Para não ver o cinza que se transforma em verde, olho para além deles.
O dia está muito quente. Quando a tarde avançar, sei que me encontrará sentado no degrau. E depois que o cinza tiver se transformado e rosa e em violeta e em azul profundo e por fim em negro, sei que estarei parado no centro daquele quarto, ouvindo os guinchos estridentes e o bater de asas dos morcegos. Gritarei, então. Muito alto, com todas as minhas forças, durante muito tempo. Não sei se foi esta a ordem, se será assim o depois. Mas sei com certeza que nem você nem ninguém vai me ouvir.

Morangos mofados - Caio F. Abreu

terça-feira, 31 de agosto de 2010


Se você vier me perguntar por onde andei
No tempo em que você sonhava
De olhos abertos lhe direi
Amigo, eu me desesperava.

sábado, 28 de agosto de 2010


Mas a verdade é que eu nunca apaguei as luzes
Eu tive que fechar tudo para nunca mais me abrir.
Eu tive que recriar o novo, aquilo que estava quebrado
Podre, imundo, petrificado, condenável

Muitas coisas para se enganar e se deixar levar
Muitas coisas que nos deixam cegos
Eu vi tanto em tantos lugares, tanta era a alegria vazia nos rostos
Tantas feridas no coração que você sequer acreditaria

Eu lutaria por isso, sonharia com isso
Mas não hoje, não mais.

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Ao meu bom deus




Meu bom deus surdo
Como podes ouvir meu discurso banhado em sinceridade
Ao passo que tomas o mesmo drinque
Que, no decorrer de minha idade, condenava,
Que outrora era absurdo?

Meu bom deus cego
Como podes ver a pureza interior
E separar o joio que não enxergas no trigo
Quando expias por julgamentos de terror
Colidindo com meu fracassado ego?

Meu bom deus mudo
Como podes falar do teu amor
À medida que cresce a inquietude concreta das coisas não certas
Se continuas apático, parado, desnudo
Tal como o mundo?

Mas por estas sórdidas vias da Tradição
Continuo eu a te clamar, meu bom deus de amor.

Lembro-me como se fosse ontem, quando deitávamos ao relento, éramos crianças com a felicidade nas mãos, que fazíamos sombras de diversos modelos nas paredes e não conhecíamos a melancolia e a cólera que realmente é a vida.
E você se foi sem me avisar, vã felicidade, me deixou no crepúsculo de um entardecer, sorriu e beijou minha testa e partiu, deixando em seu lugar a tristeza, a qual se tornou minha fiel amiga. Aquela que vai nos tirando a vida aos poucos, como um leve suspiro...
Aquela em que ou a aceitamos, ou somos vítimas de suas peças.
Quis tê-la mesmo como amiga, ora a tristeza, ora o devaneio, ora a solidão.
Estou bem sem você felicidade vil.
oh sábio tormento!
Ah como queria, como tantos outros não sentir mais nada, nem torpor, nem felicidade vã, nem repugnância, nada! ser como os outros, que não pensam e se satisfazem.

por favor me deixe em paz!

Roset Havoland.

sábado, 21 de agosto de 2010

sábado, 31 de julho de 2010

- Amor, não coloca esse quadro na sala pra mim?
- Tudo bem, pode deixar aí.
- E, quando terminar, leva seu filho pra dar um passeio? Eu não aguento mais ouvi-lo gritando e gritando...
(Quero mata-la. Agora mesmo. Quero arrancar sua cabeça e finca-la na parede)
- Claro, querida. Já vou...
(Quando foi que isso começou?)
- Que droga de quadro pesado...
(Quando eu me tornei esse punhado de merda?)
- Garoto, vem cá!
(Quando assinei meu nome nessa porra de contrato?)
- Pai, pai! Vamos parar no McDonald's!
(Quando isso vai acabar?)
- Mas você acabou de comer...
- Mas eu quero, pai! EU QUERO AGORA!
(Eu quero te jogar numa panela de óleo e te deixar fritando, mas eu faço isso?)
- Tudo bem, tudo bem...
(Não está tudo bem, nunca esteve)
- Um McLanche Feliz pra viagem, por favor...
(E uma arma carregada)
- Aquele é seu filho?
(Ela é gostosa)
- Ah, é sim. Quando foi que ele entrou no brinquedo?
(Quero enfiar meus dedos lá e ver a expressão que ela faz)
- Não sei, senhor. Mas se ele for ficar lá, precisa consumir dentro da loja.
(E se eu consumir você?)
- Vou tira-lo de lá num minuto.
(E joga-lo na frente de um carro)
- Menino, desce daí! Sua mãe vai me matar se souber que viemos aqui!
(Se eu não mata-la antes)
- Chega, vamos pra casa agora!
(Que casa?)
- Querida, voltamos...
(Tomara que você já tenha se enforcado)
- Ah, oi!
(Merda, não foi dessa vez)
- Já está tarde, não é?
- Vamos dormir?
(Isso, vamos)
- Vamos... Claro...
(E eu vou acordar...)


Um livro, que seria bom se tivesse saido do rascunho.

quarta-feira, 28 de julho de 2010

quinta-feira, 15 de julho de 2010


Tempo Agora no aeroporto Guarapuava às 10:00

Encoberto
temperatura: 5°C

Sens. Térmica: -2°C

Vento

ESE 18km/h

sábado, 3 de julho de 2010

Meu amigo


“Meu Amigo, não sou o que pareço.
O que pareço é apenas uma vestimenta cuidadosamente tecida,
que me protege de tuas perguntas e te protege da minha negligência.Meu Amigo, o Eu em mim mora na casa do silêncio,
e lá dentro permanecerá para sempre, despercebido, inalcançável.
Não queria que acreditasses no que digo nem confiasses no que faço
– pois minhas palavras são teus próprios pensamentos em articulação e meus feitos,
tuas próprias esperanças em ação.Quando dizes: “O vento sopra do leste”,
eu digo: “Sim, sopra mesmo do leste”,
pois não queria que soubesses que minha mente não mora no vento, mas no mar.
Não podes compreender meus pensamentos, filhos do mar,
nem eu gostaria que compreendesses. Gostaria de estar sozinho no mar.Quando é dia contigo, meu Amigo, é noite comigo.
Contudo, mesmo assim falo do meio-dia que dança sobre os montes
e da sombra de púrpura que se insinua através do vale:
porque não podes ouvir as canções de minhas trevas
nem ver minhas asas batendo contra as estrelas
– e eu prefiro que não ouças nem vejas.
Gostaria de ficar a sós com a noite.Quando ascendes a teu Céu, eu desço ao meu Inferno
– mesmo então chamas-me através do abismo intransponível,
“Meu Amigo, Meu Companheiro, Meu Camarada”,
e eu te respondo: “Meu Amigo, Meu Companheiro, Meu Camarada”
– porque não gostaria que visses meu Inferno.
A chama queimaria teus olhos, e a fumaça encheria tuas narinas.
E amo demais meu Inferno para querer que o visites. Prefiro ficar sozinho no Inferno.Amas a Verdade, e a Beleza, e a Retidão.
E eu, por tua causa, digo que é bom e decente amar essas coisas.
Mas, no meu coração rio-me de teu amor. Mas não gostaria que visses meu riso.
Gostaria de rir sozinho. Meu Amigo, tu és bom e cauteloso e sábio.
Tu és perfeito – e eu também, falo contigo sábia e cautelosamente.
E, entretanto, sou louco. Porém mascaro minha loucura.
Prefiro ser louco sozinho: Meu Amigo, tu não és meu Amigo,
mas como te farei compreender? Meu caminho não é o teu caminho.
Contudo juntos marchamos, de mãos dadas”.

Gibran Khalil Gibran

quinta-feira, 1 de julho de 2010

O louco


Perguntais- me como me tornei louco. Aconteceu assim: Um dia, muito tempo antes de muitos deuses terem nascido, despertei de um sono profundo e notei que todas as minhas máscaras tinham sido roubadas - as sete máscaras que eu havia confeccionado e usado em sete vidas - e corri sem máscara pelas ruas cheias de gente, gritando: " Ladrões, ladrões, malditos ladrões!"
Homens e mulheres riram de mim e alguns correram para casa, com medo de mim. E quando cheguei à praça do mercado, um garoto trepado no telhado de uma casa gritou: "É um louco!". Olhei para cima, para vê-lo. O sol beijou pela primeira vez minha face nua.
Pela primeira vez, o sol beijava minha face nua, e minha alma inflamou-se de amor pelo sol, e não desejei mais minhas máscaras. E, como num transe, gritei: "Benditos, benditos os ladrões que roubaram minhas máscaras!" Assim me tornei louco.
E encontrei tanto liberdade como segurança em minha loucura: a liberdade da solidão e a segurança de não ser compreendido, pois aquele que nos compreende escraviza alguma coisa em nós.